Histórias

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Tia Fogueteira



(por Paulo Roberto Heuser, 2 de junho de 2006)

Minha tia se foi. Suavemente, sem alarde, apenas se foi. Após uma longa vida que marcou as vidas de muitos. Tenho inúmeras lembranças, da minha infância, quando eu vinha passar parte das minhas férias, em Porto Alegre, na casa dela. Como minha prima era mais velha, eu era a única criança na casa, nesses períodos. Aquilo que tinha tudo para se transformar em algo maçante, para uma criança, passar férias com a tia velha (na minha visão da época), tornava-se uma sucessão de dias emocionantes, repletos de surpresas. Além de ser tratado como um rei, a base de Coca Cola Família e cachorro quente feito no grill, havia televisão na casa! Nenhum dia era igual ao outro. Desde a chegada, após uma poeirenta viagem de ônibus, desde Santa Cruz, na rodoviária da Conceição, o táxi-mirim - como chamavam os fuscas - e o sobrado na Eça de Queiroz. A manhã seguinte iniciava com a ida até o galinheiro cheio de perus (seria um perueiro então?). Sim, havia perus em plena Eça. Assoviava minutos a fio, para ouvi-los produzir o glu-glu. A rua transbordava de sons, verdureiros em carroças, afiadores de facas, vendedores de amanteigados. Destes fiquei enfarado, após comer 1kg, de uma sentada. Estratégicas idas ao centro, de bonde, descendo a Protásio, para tomar um chá (ugh!) com torta (oba!) nas Lojas Krahe, com direito a andar na primeira escada rolante de Porto Alegre, cuidando para não pagar mico na hora de pisar. Chá nas Lojas Krahe apenas para menores de 12 anos, pois alguns playboys haviam aprontado e escandalizado as senhoras da sociedade. Inevitável dar uma passadinha na Hobby, na subida da Rua da Praia, para comprar um Matchbox - miniatura inglesa de carros. Aquela loja era minha projeção do paraíso, com uma enorme pista de autorama. Em outro dia, para não acumular todas emoções num só, um pulo na Praça Ruy Barbosa, lá no Varner Oliveira, para comprar aeromodelos movidos a elástico. A Rua da Praia, nessa época, era algo semelhante à Padre Chagas de hoje. O segredo da tia era apenas um: ela realmente gostava de participar dessas aventuras. Ajudava a montar o aeromodelo, achava rádios velhos, no porão, para que eu os desmontasse. Não é preciso dizer o que acontecia quando ligados, após a remontagem. Uma troca do fusível - não havia disjuntores - resolvia, não ocorreu nenhum incêndio muito grande. Essa tia era mais uma cúmplice do que uma tia. Nos meses de junho, próximo de São João, Tia Marga retribuía as visitas, indo passar uns dias em Santa Cruz, onde nascera. Suspeito que escolhia esse período devido aos rojões. Enquanto meus pais trabalhavam, ela nos dava dinheiro para comprar rojões, os maiores, mais barulhentos e mais fumarentos. Nosso quintal era transformado numa praça de guerra, repleto de fumaça e cheiro de pólvora queimada. Toda gurizada da vizinhança trazia latas para serem explodidas. E ela participava ativamente. Meu pai comentava que a fumaça era visível a uma quadra de distância. A tia gostava tanto de bombas, que sempre as tinha na mesa de cabeceira. Quando os cachorros começavam a uivar, nas noites de lua cheia, ou os gatos faziam a chorosa corte, a Dona Marga acendia um rojão, sem levantar da cama, e jogava pela janela. Ela tinha um cão, da raça Boxer que, apesar de ter uma cara horrível e chamar-se Boca Negra, era uma versão canina do maricas. Durante um dos bombardeios noturnos, Boca Negra escondeu-se sob o tanque, na lavanderia. Passado o pavor, Boca Negra viu-se entalado. Tiraram o tanque para liberta-lo. Essas coisas passaram pela minha mente enquanto me despedi. E percebo que estamos entrando em junho. Será mera coincidência o fato da Tia Marga estar nos deixando agora? Neste junho irá soltar rojões em outros quintais? Chegando lá, estoure um rojão por nós.


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